A música foi sempre, e continua a ser, a arte que mais de perto me acompanha. Não é de estranhar. Cresci (literalmente) a ouvir as obras de Puccini, Verdi, Leoncavallo, Mascagni, etc., através de vozes como a de Gigli, Tebaldi, Berganza ou Callas, de Mozart, Grieg, Dvorak, Liszt, Beethoven, Bach, etc., através de abordagens inspiradas de von Karajan, Itzhak Perlman, Mstislav Rostropovich, etc.. Tive o privilégio, ainda criança, de assistir a grandes produções de música clássica (designadamente ópera). Nestas ocasiões, o fascínio sentido por um 'puto' da minha idade extravasava a música e estendia-se à 'ambiência' de grande solenidade que parecia rodear todo o espectáculo. Gente muito séria, cheia de 'boas maneiras' nos seus 'fatos de grilo' (eles) e nos seus vistosos vestidos compridos (elas). O S. Carlos, em Lisboa, era naturalmente, o paradigma desta 'ambiência' fascinante.
Cresci e, apesar de ter continuado a gostar da música, comecei a perder o tal fascínio, talvez porque fui constatando que aquilo que motivava a ida ao teatro de muita da tal gente séria se relacionava muito mais com o mostrar-se numa espécie de 'feira das vaidades' do que com a 'arte de combinar os sons' propriamente dita. Será que para ouvir o
'Vissi d'arte' (já agora
http://www.youtube.com/watch?v=_OIExoUb8jk) implica vestir um 'smoking' e substituir as calças de ganga por uma daquelas da listinha brilhante? À dose (suportável) de elitismo cultural, juntava-se uma (insuportável) dose daquilo que pode designar-se por- perdoem-me o termo - 'cagança' social. O que tem isto a ver com o tema deste blog? A resposta leva-nos até à cidade de Salzburg.
Cheguei àquela cidade austríaca de madrugada. Ainda na estação, vi um grande cartaz que me permitiu con
statar que estava a decorrer o célebre Festival de Música de Salzburg (
http://www.salzburgerfestspiele.at/), um evento que eu já sabia ser ponto de encontro de nomes maiores do panorama mundial da música clássica. Não admira. 'Respira-se' música nas ruas da cidade. São os muitos estudantes de música que, com os seus violinos, guitarras, tubas, violoncelos, etc., animam os becos, as praças, as avenidas; é a música-ambiente que se ouve nas esplanadas dos inúmeros cafés existentes no centro (não é que me tenha sentado nalguma delas, tal a quantidade de Schillings que era preciso desembolsar...) e a que ajuda os visitantes da casa onde nasceu o génio WA Mozart a passar o tempo na interminável bicha; é a Sinfonia nº 41 de Mozart a 'abrilhantar' os momentos passados em qualquer casa de banho pública...
Consegui a brochura com o programa completo do Festival. Entre os muitos eventos musicais que enchiam o mês de Agosto, chamou-me a atenção uma série de concertos destinados a jovens. Fui até à Felsenretisschule, um magnífico edifício construído na pedreira de onde saíram as pedras que serviram para erguer a catedral e que, depois de ter servido de escola de equitação, foi transformado em teatro (nos anos 20). Preços reduzidos, espectáculo fabuloso... e milhares de calças de ganga a encher o espaço!
É importante referir que em Portugal, na altura, as oportunidades para as 'calças de ganga' entrarem em contacto com as confortáveis cadeiras de qualquer teatro onde tivessem lugar eventos de música clássica eram praticamente inexistentes. Hoje, felizmente, este estado de coisas mudou e estamos finalmente a aproximarmo-nos daquilo que acontecia em Salzburg há 30 anos atrás. Mais vale tarde do que nunca...